A história de um povo que vivia tranquilo no seu território com toda sua inteireza e, abruptamente, se viu em contato com o mundo dos “brancos”. Tal contato alterou a mobilidade no seu território e, impôs aos Ikólóéhj Gavião um deslocamento forçado para a beira do rio Machado, onde se localizava a sede do seringal do Barros para o qual trabalhavam, sem sombra de dúvida, em um regime de escravidão. Assim como os Karo Arara, seus vizinhos, os Ikólóéhj Gavião também ocupavam uma grande área territorial tradicional, andavam em grupos domésticos, de um canto para o outro com suas festas, seus rituais, seus modos de viver e reproduzir a vida com oscilações de relação com seus vizinhos Zoró. Junto a essa mobilidade forçada vieram as doenças temidas na época, como sarampo e a catapora que quase dizimaram esse povo e seus vizinhos. O medo, as fugas para o mato, as mortes incontáveis foram as vivências desses povos. E esse medo da doença forçou os Ikólóéhj Gavião a um conflito com os Karo Arara, relembrando de tempos em tempos por ambos os povos.
As narrativas de Sorabáh Djigúhr (grande chefe dos Ikólóéhj ), nos levaram a mim, e aos meu colaboradores e intérpretes, a antigas viagens por lugares impensáveis, tais como o rio Madeira, localizado a mais de mil quilômetros de distância por via fluvial das atuais aldeias. Muitas histórias foram narradas destacando as relações com outros grupos étnicos, sejam eles brancos ou índios. As histórias dos antigos mostram que desde os tempos ancestrais os Ikólóéhj desejaram estabelecer contato com pessoas que não faziam parte do seu grupo. O contato com seringueiros, caucheiros e marreteiros desde 1940 transformou bastante a organização residencial dos Ikólóéhj. Se antes desse contato as malocas estavam dispersas pelo território, a relação com o branco fez com que ela se concentrasse, na aldeia Igarapé Lourdes, às margens do rio de mesmo nome. Os Ikólóéhj se organizavam em grupos domésticos compostos por famílias extensas, que constituíam unidades autônomas. Cada grupo doméstico era chefiado pelo zavidjaj (dono de maloca) e havia certa flexibilidade. E foi assim, grupos autônomos deslocavam-se pelo território compreendido entre os rios Aripuanã, Roosevelt e Branco.
Podemos dividir esses deslocamentos em “quatro movimentos” para facilitara compreensão. O que chamo de “primeiro movimento” diz respeito ao deslocamento dos grupos doméstico das imediações dos rios Roosevelt/Aripuanã até os igarapés que formam o rio Branco. O “segundo movimento” foi motivado por alterações na ocupação do território pelos povos indígenas que procuravam afastar das frentes de expansão dos brancos na Amazônia, fato que causou tensões entre povos vizinhos e que conduziram os Ikólóéhj até os igarapés. O “terceiro movimento” teve influência direta do contato interétnico quando os grupos domésticos passaram a residir às margens do igarapé. O “quarto movimento”, por sua vez, iniciou-se quando da retomada da terra invadida por posseiros nos anos de 1980, em que famílias da aldeia Igarapé Lourdes se dispersaram novamente para garantir a posse da terra, movimento que permanece ainda hoje.
Há poucos materiais publicados sobre os Ikólóéhj. A primeira vez que os Ikólóéhj apareceram em um texto escrito foram no artigo de Harald Schultz intitulado “Vocábulos Urukú e Digüt”, publicado em 1955 em uma revista francesa chamada Journal de La societédes americaniste. Alguns de forma mais o menos permanente, outros temporariamente, como era o caso dos Ikólóéhj. Quanto ao nome “Digüt”, registrado por Schultz, houve um mal-entendido causado por problemas de tradução. Digüt – grafado como Djigúhr na escrita utilizada atualmente nas escolas indígenas- erao zavidjaj do grupo familiar que iniciou as relações de trocas com os caucheiros e seringueiros estabelecidos na margem esquerda do Rio Machado. Conta a história que Schultz perguntou a Djigúhr, tendo um Arara como intérprete, como se chamava seu povo. O intérprete entendeu que o pesquisador perguntara o nome do chefe indígena e respondeu: “Djigúhr”. E assim, pelo nome Digüt, os Ikólóéhj foram registrados oficialmente pelos brancos. O cacique Sebirop explicou que, anos depois, precisou ir pessoalmente à FUNAI, para desfazer esse mal-entendido, pois até aquele momento seu povo estava registrado com o nome do seu pai, Djigúhr. Com a sua morte desapareceram muitos conhecimentos sobre os Ikólóéjh, os dados coletados por Brunelli junto ao Zoró, entre 1984 e 1985, foram importantes para compreender as histórias dos antigos Ikólóéjh.
Alguns senhores e também os professores indígenas falam da existência de vários grupos no meio do povo Ikólóéjh. Ao que parece havia os Pàbiéhj (lit. povo dos rostos), os Báhsèhvéhj (lit. povo das folhas), os Mav Ságàéhj (lit. povo da base da castanheira), os Guléhj (cuja tradução é desconhecida) e os Ikólóéhj (lit. povo gavião). Eram estesúltimos conhecidos como Paabíhej (lit. matadores de gente), guerreiros, pelo Zoró. A identidade Ikólóéhj se destacou e deixou em segundo plano o pertencimento aos antigos grupos patrilineares. Ainda que a redução populacional provocada pelas doenças dos brancos e, em menor número, pelas guerras intertribais, estimulou a união entre esses diferentes grupos através de casamentos. Identificar as pessoas como pertencentes aos grupos se tornou objeto de pesquisa dos professores da Escola Xenepoabáh da Aldeia Igarapé Lourdes. A identificação se dá pelo autorreconhecimento, apenas os mais velhos conseguem se identificar, porque atualmente estão todos misturados. Nosso narrador enfatiza que, neste “rio grande”, enquanto a canoa se deslocava era acompanhada pelo ágav tìh, o boto. “Quando a gente anda de barco no ‘rio grande’, ágav tìh anda junto, do lado do barco. Filhote de ágav tìh é tamanho do tatu, ele anda junto também [...]” O relato indica que esses guerreiros navegaram pelos rios Branco. No decorrer dessa longa viagem encontraram as colocações dos djalaéhj (brancos), pegaram coisas deles e foram perseguidos na volta. O relato de Sebirop sobre esse episódio diz que um vaváh tinha sonhado que encontrariam facões nas casas dos brancos e por isso foram buscá-los.
Conforme registrado anteriormente por Brunelli, os Zoró viviam mais ao norte da localização atual, às margens do rio Branco. As viagens dos ancestrais dos Ikólóéhj até o “rio grande”, se deram a partir do rio Branco ou quando moravam mais ao norte, nas proximidades do rio Roosevelt ou mesmo do rio Aripuanã? Não sabemos mas suspeito que os Ikólóéhj, ao tempo das referidas expedições guerreiras situavam-se mais ao norte tendo em vista a distância de mais de mil quilômetros entre o rio Branco e a foz do rio Aripuanã. Tempos remotos as línguas Gavião e Zoró formavam uma única língua e formaram as últimas a se diferenciar dentro da família Mondé, a partir de dados etno-históricos, expedições guerreiras dos ancestrais dos Ikólóéhj percorreram os rios da região até um “rio grande” em que botos acompanharam as canoas e que os ancestrais Zoró habitavam as margens do rio Aripuanã próximo da foz. Embora construíssem canoas para navegar por eles, eram os rios menores e os igarapés os locais preferidos para morar. Os grades rios são habitações de Goján, o dono das águas, e do seu povo, os Gojánéhj, e por isso não são indicados para morada dos humanos.
Antes do contato, as famílias não habitavam grandes aldeias como são hoje Igarapé Lourdes e Ikólóéhj, mas viviam em lugares/aldeias formados por uma ou duas malocas que abrigavam uma família extensa cada, espalhadas pelo território. Os Ikólóéhj chamam aldeia de váh (lugar), como em Pasav Kókúhv Váh (lugar de bruto de babaçu), uma das aldeias antigas mais comentadas pelos narradores. Sarobáh Djigúhr, Catarino Sebirop, Frederico Pinúhn e João Dájdàjà listaram dezenas de aldeias em que eles próprios ou seus ascendentes moraram antigamente. Essas aldeias foram formadas à medida que os Ikólóéhj se movimentavam das imediações do rio Branco em direção à Serra da Providência e dali para as proximidades do rio Machado.
As relações sociais entre os Ikólóéhj e os Zoró, por exemplo, oscilavam constantemente. Momentos de paz e trocas matrimoniais se alternavam com momentos de conflito e guerras, o que levou os Ikólóéhj a se afastar do rio Branco e a procurar locais mais seguros no vale entre o rio Branco e a Serra da Providência. Mais próximos ao rio Branco, situavam-se as malocas Zoró que após terem desalojado os Cinta Larga da margem direita, passaram a ocupar ambas as margens desse rio.
Diz Sebirop que os “antigos” toparam com um acampamento de estranhos mais ao sul, onde encontraram muitos objetos diferentes, entre eles roupas claras e botas, à semelhança de uniformes militares. Diante disso, os Ikólóéhj associaram esta “história dos antigos” à Comissão Rondon e é com este nome, canção de Rondon, que cantam uma música antiga que fala desse episódio. “À bó zar [outo] máh pagátaá [nos cortou] osén osén Agora que o outro branco passou por nós...[...]” Depois de traduzir, Sebirop explicou em detalhes o contexto dessa música. Os ancestrais encontraram um acampamento dos zaréhj, pessoas desconhecidas, os outros. O acampamento estava vazio e desse local recolheram a roupa clara, e a levaram para sua aldeia junto com outros objetos. Diz Sebirop: ”Os índios viram a picada dos brancos, muito tempo depois a gente ficou sabendo que era Marechal Rondon, que era o acampamento dos peões do Rondon que andavam por aqui.[...]”
Esses outros, que usavam roupas brancas, foram associados aos djalaéhj do mito da criação que, juntamente com os diferentes povos indígenas, surgiram do interior de uma rocha um formato de maloca e passaram a povoar o mundo. Sebirop reforçou ainda que os objetos coletados, ao mesmo tempo que causaram fascínio, provocaram temor entre os índios. O medo de doenças desconhecidas provenientes daquelas peças misturava-se ao desejo de se aproximar de seus donos, os djalaéhj, os que fizeram a escolha correta de acordo com o mito de origem da humanidade. Uma história muito conhecida diz que um homem chamado Zaliáv Tìh encontrou cortes diferentes na mata, cortes de facão, e quis saber de onde teria vindo esses cortes. O interesse em obter os facões que já eram desejados e procurados há bastante tempo, levou os Ikólóéhj a seguir estes cortes, através dos quais acharam um Arara. “Um gavião foi caçar, encontrou uma trilha dos Arara. Voltou para casa avisando os outros Gavião, dizendo que vira um rastro, um caminho de um indio estranho [...]. Ninguém queria esperar, queriam ver logo quem era essa gente [...].”
Depois dessa primeira aproximação algumas mulheres arara desejaram casar com homens Ikólóéhj e assim fizeram. A relação entre grupos, amistosa a princípio, estremeceu anos mais tarde, depois de um conflito em que homens arara foram mortos pelos kólóéhj. Os Arara, naquele tempo, já trabalhavam no seringal Santa Maria, de propriedade de José Barros, na margem esquerda do rio Machado levaram os novos amigos para conhecer os brancos para que estes conseguissem também os cobiçados facões. Para isso, pediram que os Ikólóéhj fingissem ser Arara, sendo necessário amarrar o pênis no cinto do babaçu, logo na segunda visita não foi mais necessário o disfarce. O cacique dos Arara falou:”- Vocês podem ficar como estão, falando o idioma de vocês de todo jeito ele [José Barros] gosta de vocês”. Dali por diante passaram a “usar o pênis como de costume, escondendo com palha”.
Quando já estavam acostumados com os Arara, nas imediações do seringal, Sorobáh e seus parentes foram interpelados por Harald Schultz que os descreveu assim: “O homem coloca sobre o prepúcio um laço de palha de palmeira. Perfumaram o septo-nasal, colocando um tubinho de talo de taquara, no qual induzem uma longa pena de rabo de Arara vermelha, que sempre pende para o lado esquerdo. [...]”.